sábado, 21 de setembro de 2019

Neomissiologia: a sinistra raiz do "Sínodo da Amazônia"

Há alguma razoabilidade teológica na falsa concepção "missionária" relativista, materialista e filopagã que motiva o sínodo?
Padre em sua Missa de posse como pároco em uma paróquia dedicada ao S. Coração de Jesus. Atrás do altar, acima de uma cabeça mitrada, um grande cacique no lugar de Nosso Senhor.
Muitas questões têm sido levantadas sobre o discutível sínodo que deverá reunir os bispos da chamada "região pan-amazônica" e terá lugar no Vaticano, entre os dias 6 e 27 do próximo mês. Porém, é preciso lembrar que a ideologia pseudomissionária que o embasa, e da qual surgiu toda uma reverência alienante pela "teologia indígena", não surgiu do nada anteontem. Ela está por aí há muito tempo, disseminando-se e fazendo prosélitos nos seminários, congregações e dicastérios da Igreja.
Estamos falando de um conceito de missão corrompido até a medula em seus pressupostos teóricos, alheio a uma autêntica propaganda fide e estreitamente vinculado à decrépita Teologia da Libertação. Esta neomissiologia tem influenciado na formação intelectual de várias gerações de clérigos já há muitas décadas. Os sacerdotes e demais religiosos formados nessa concepção são intencionalmente (des)preparados para atuar pastoralmente não com o intuito de evangelizar eficazmente os povos, mas com um ensejo fortemente marxista e culturalmente relativista. Com isso, muitos padres são ordenados sem terem a menor noção do que seja realmente a missão da Igreja e sem fé alguma no caráter eminentemente sobrenatural e salvífico do múnus missionário que Nosso Senhor nos deixou.
Não faz muito tempo eu debatia sobre o tema da conversão dos índios com um amigo seminarista do 1º ano de Teologia de uma conhecida congregação fundada por um santo missionário e bispo do século XIX. Durante o nosso papo, fiquei surpreso e ao mesmo tempo triste por constatar que, embora estivesse diante de um rapaz bem mais inteligente e honesto do que a média dos seminaristas que conheci, um católico aplicado nos estudos, sério em seus propósitos vocacionais e avesso às tantas excentricidades litúrgicas e pastorais que abundam em nossos dias, ele já havia assimilado integralmente a cartilha da neomissiologia.
No seu entendimento, os índios não precisam ser convertidos a Cristo e batizados; a salvação deles já estaria garantida pelo seu próprio modo de vida ecológico e coletivista (refratário ao capitalismo, o pecado supremo na mitologia da TL). Fiquei embasbacado pela postura relativista daquele meu amigo, que eu julgava possuidor de anticorpos intelectuais robustos o bastante para resistir a esses vírus ideológicos. A ostensiva doutrinação no relativismo, contudo, recebida certamente ao longo de várias aulas do seu curso de Teologia ou mesmo em encontros de formação ministrados por padres mais velhos (e ideologicamente engessados) dentro da congregação, mostrava ali a sua eficácia.
neomissiologia assimilou o relativismo cultural e religioso como parâmetro para a atividade “missionária” e tornou-se extremamente influente entre missionários "católicos" não só no Brasil, mas em várias partes do mundo.
O conceito de relativismo cultural evoca uma concepção antropológica que foi assaz promovida pelo antropólogo teuto-americano Franz Boas nas primeiras décadas do século XX e que, posteriormente, foi muito difundida por seus discípulos não só na antropologia e na sociologia, mas também na filosofia e na teologia. Boas é também um dos pais da antropologia cultural determinista, segundo a qual o homem não é livre o suficiente para desvencilhar-se da cultura na qual está inserido e fazer escolhas morais livres e responsáveis norteado pela sua própria razão.
Franz Boas, antropólogo do relativismo cultural
Uma das discípulas de Boas, Margaret Mead, tornou-se inclusive uma precursora da deletéria "liberação sexual" contemporânea ao escrever um livro em que, inspirando-se em supostos costumes tribais do povo de Samoa, defendia a ideia de que a total liberalização e desinibição das práticas sexuais entre adolescentes não traria quaisquer consequências negativas para eles. 
De acordo com a concepção cultural relativista, a cultura cristã ocidental não é superior a qualquer cultura tribal primitiva, e todos os costumes culturalmente enraizados numa etnia são equivalentes aos de quaisquer outras sociedades, não sendo "nem melhores nem piores que outros, apenas diferentes". Conforme esta visão, não caberia qualquer comparação entre valores e costumes de culturas distintas, uma vez que o que determinaria a legitimidade de uma prática cultural seria sua mera aceitação na sociedade em que foi cristalizada ao longo das gerações.
Logo, estaríamos sendo etnocêntricos e discriminadores se avaliássemos os costumes dos povos com categorias do tipo "bom" e "mau", "ético" e "antiético", "verdadeiro" e "falso", "moral" e "imoral", "humano" e "desumano", "civilizado" e "bárbaro", "nobre" e "ignóbil", "elevado" e "vulgar". Por essa perspectiva, as etnias africanas que tem por costume a mutilação genital de mulheres não poderiam, nunca, ser objeto da nossa condenação, do nosso juízo ético ocidental, e tampouco de uma intervenção corretiva de qualquer natureza. O mesmo valeria para as tribos onde se pratica o estupro de jovens como iniciação na vida adulta ou o assassinato de crianças deficientes.
A preservação dos costumes culturais primitivos estaria acima de quaisquer princípios morais não poderíamos nos valer sequer dos preceitos éticos mais consensuais para intervir em favor daquelas crianças, jovens e mulheres torturados e mortos por suas próprias comunidades. É notório que essa relativização cultural deriva de uma prévia relativização moral, na qual não existem critérios objetivos de juízo moral e tampouco direitos naturais universais que possam ser garantidos a todos os seres humanos, de todas as nações, religiões e etnias.
Julgar os valores cristãos superiores aos demais, diriam os relativistas, seria cair num etnocentrismo démodé, seria voltar ao período colonial e suas grandes empresas de catequização. E tentar convencer os índios a abraçarem os princípios do Evangelho seria até mesmo uma forma de “violência” contra essas culturas que, para eles, devem ser preservadas intactas a todo custo!
Aliás, os “neomissionários” não se limitam a considerar as culturas indígenas equivalentes à cultura ocidental, mas julgam-nas até superiores aos nossos hábitos e valores civilizacionais! Sua atividade "missionária" junto aos índios com frequência não inclui apresentar-lhes a Boa Nova do Evangelho a fim de convencê-los a abraçarem a fé cristã com todos os seus santos preceitos. Não. Sua ação dita "missionária" se resume a representar politicamente os interesses materiais das tribos, reclamar benesses do governo, solicitar serviços de assistência social e lutar pelas demarcações de mais reservas, enquanto defendem que suas culturas e costumes permaneçam intactos, mesmo aqueles costumes pagãos mais violentos, desumanos e ofensivos a Deus.
Parte-se do pressuposto de que os nativos já vivem maravilhosamente bem em suas tribos e sua cultura não merece ser conspurcada em sua suposta pulcritude autóctone pelas exigências interventoras dos preceitos religiosos cristãos ou pelos impedimentos éticos e legais oriundos do mundo civilizado (este sim, carente de ser convertido e redimido, quiçá não pela opressora catequese católica, mas sim pelo idílico modus vivendi tribal dos nativos amazônicos).
O mundo civilizado, de acordo com os neomissionários, seria um mundo corrompido pelo capitalismo, pelo espírito de competição, pelo consumismo, pela desigualdade, pelo avanço técnico que devasta a natureza e pela falta de espírito comunitário. Por outro lado, o mundo das tribos indígenas que vivem na selva seria, no imaginário deles, um mundo onde supostamente reina a solidariedade, onde se respeita a "mãe natureza", onde se cultuam os espíritos da floresta em comunhão com o meio ambiente, onde seres humanos ainda "puros" vivem em perfeita harmonia. 
Nessa perspectiva, os indígenas devem ser preservados da nossa influência corruptora, impura e decadente; devem ser resguardados da influência nociva da civilização.
Observamos, então, que os "neomissionários" parecem acreditar piamente no velho mito do “bom selvagem”, uma fantasia que, desde Rousseau e do romantismo, logrou obnubilar o juízo de muitos. Os que veem o mundo por esse prisma imaginam que o processo de educação e civilização atua como um fator corruptor (e não aperfeiçoante) do caráter humano. Pensam eles que os avanços civilizatórios e os progressos da ciência e da técnica tornaram o homem mau, enquanto que a rudeza de uma vida primitiva poderia tê-lo preservado puro e bom. Como se o canibalismo e os rituais envolvendo sacrifícios humanos, só pra citar dois exemplos, fossem invenção dos países civilizados e nada tivessem a ver com povos ameríndios primitivos.
Ao mesmo tempo, diversos teólogos da neomissiologia distorcem absurdamente a mensagem do Evangelho para fazê-la remeter não a uma obra divina e sobrenatural de redenção, regeneração e salvação do gênero humano, mas sim a um ideal de organização social de tipo igualitário, coletivista e ecologicamente correto. Muitos neomissionários acreditam que os indígenas já vivem perfeitamente esse modelo de vida ideal e, portanto, já estariam aptos para entrar imediatamente no Reino do Céu, não havendo qualquer necessidade de catequese, conversão e batismo.
Em 2007, porém, o cardeal William Levada, então prefeito da S. Congregação para a Doutrina da Fé, lhes recordava em nota oficial aprovada pelo então Papa Bento XVI:
Os relativismos e irenismos de hoje em âmbito religioso não são um motivo válido para descurar este trabalhoso mas fascinante compromisso, que pertence à própria natureza da Igreja e é sua tarefa primária.”
Não há qualquer precedente nas fontes da Revelação Divina ou qualquer argumento teológico consistente que justifique trocar o anúncio do autêntico Evangelho de Cristo, que precisa ser comunicado e promovido em vista da salvação das almas, por um aguado socialismo sincretista e filopagão! O múnus missionário da Igreja é um tão grave e irrenunciável dever que interpela, de certo modo, a todo e qualquer fiel católico!
Padre Antônio Vieira, jesuíta do século XVII,
instruindo e pregando aos índios.
Os grandes santos missionários da História da Igreja, homens da estatura de São Paulo Apóstolo, São Francisco Xavier, São José de Anchieta ou os Santos Protomártires do Brasil, não empreenderam tantos esforços heroicos, não derramaram seu suor e seu sangue, não empenharam a própria vida, consumindo-se totalmente em longas e extenuantes atividades missionárias, para manter os nativos no paganismo ou apenas para assegurar-lhes alguns reles favores materiais do governo a título de "direitos humanos"!
Diante daqueles gigantes, daqueles santos missionários que brilham como luzeiros na memória comum dos verdadeiros cristãos, o que dizer de posturas como a do "teólogo libertador" alemão padre Paulo Suess, para quem "fora da cultura [nativa], não há salvação", ou a do "bispo" austríaco Dom Erwin Kräutler que, tendo atuado por décadas na região amazônica, como bispo e como presidente do funesto Conselho Indigenista Missionário (CIMI-CNBB), orgulha-se por não ter jamais convertido um índio sequer à santa Fé dos apóstolos e mártires?
Bispo D. Erwin Kräutler ornado de penacho por índio.
A postura deste clero relativista modernoso é um sacrílego ultraje à memória daqueles santos missionários!  Só não podemos dizer que eles devem estar "se revirando no túmulo" porque já gozam da Felicidade eterna prometida pelo Senhor aos que O testemunhassem com coragem e fidelidade!
Pior: a postura apóstata do clero modernista ofende e contraria diretamente o próprio Deus Filho, Jesus Cristo Nosso Salvador, que nos ordenou: 
"Toda autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo." S. Mt XXVIII, 18ss
Nosso Senhor Jesus Cristo nos mandou, sim,
pregar para converter e batizar os pagãos.
"E disse-lhes: ‘Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado.’." S. Mc XVI,15s
Rebelde a este inequívoco mandato divino, o plano pastoral do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), um organismo vinculado à CNBB, prescreve:
103. Os missionários e as missionárias do Cimi não procuram convencer os índios individual ou coletivamente a abandonar a sua religião. [...] A finalidade do diálogo interreligioso é o intercâmbio de dons recebidos, em atitude de respeito aos planos de salvação de cada religião. 
116. Para as diferentes mediações da ação evangelizadora do Cimi, a utopia indígena está sempre presente.
117. Para o Cimi, os povos indígenas são detentores e portadores de valores evangélicos e, portanto, são também mediadores dessa palavra. Há uma profunda reciprocidade salvífica entre os povos indígenas e a ação evangelizadora da Igreja.
O que diriam a esses falsos pastores relativistas os veneráveis santos de etnia indígena, como a casta e mortificada Santa Kateri Tekakwitha, que contrariou sua família e sua comunidade para abraçar Cristo e a fé católica, ou o devoto San Juan Diego Cuauhtlatoatzin, que recebeu as aparições e o milagre da Virgem da Guadalupe? Provavelmente eles os repreenderiam lançando-lhes à face um sólido bloco de verdades nada confortáveis para os articuladores do Sínodo da Amazônia!
A santa indígena Kateri Tekakwitha
Aliás, será que a soberba dos promotores da neomissiologia é tamanha que eles acreditam ter mais razão do que a própria Mãe de Deus? Ora, ela apareceu no México quinhentista a um índio, trazendo feições indígenas e sinais miraculosos que perduram até hoje, justamente para comunicar a Verdade aos nativos pagãos daquela região e levá-los à necessária conversão!
Convenhamos: haja pretensão para considerar-se mais esclarecido em matéria de religião do que a Santíssima Virgem Maria e até mais sábio do que o Seu Divino Filho, a Sabedoria Encarnada, que nos mandou pregar e batizar!
A Santíssima Virgem Maria de Guadalupe
Se a salvação dos pagãos pudesse ser assegurada meramente por uma cultura coletivista e ecologicamente correta, o apóstolo São Paulo não teria dito:
A ira de Deus se manifesta do alto do céu contra toda a impiedade e perversidade dos homens, que pela injustiça aprisionam a verdade. Porquanto o que se pode conhecer de Deus eles [os pagãos] o lêem em si mesmos, pois Deus lhes revelou com evidência. Desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se tornam visíveis à inteligência, por suas obras; de modo que não se podem escusar. [...] Mudaram a majestade de Deus incorruptível em representações e figuras de homem corruptível, de aves, quadrú­pedes e répteis." Rm I, 18-23
E ainda: Pois já demonstramos que judeus e gregos (pagãos) estão todos sob o domínio do pecado, como está escrito: Não há nenhum justo, não há sequer um.” Rm III, 9b-10
Os clérigos entusiastas da "teologia indígena" deveriam questionar-se seriamente se não estão cometendo, portanto, um extremo e vergonhoso ato de irresponsabilidade e de traição a Jesus! Pois, com suas ideologias, colocam em risco evidente de danação eterna um imenso número de almas que, por sua vocação e ordem, eles teriam o dever de catequizar, converter, batizar, pastorear e introduzir na plenitude dos sacramentos e dos dons que Cristo comunica aos membros de Sua Igreja!
Não apenas irresponsáveis, mas escandalosos e até desumanos são os que tentam justificar e blindar, sob o pretexto de "proteção da cultura", os crimes bárbaros cometidos por certas tribos, como o costume supersticioso e selvagem de matar crianças que nascem gêmeas, deficientes ou com alguma mancha na pele!
Crianças que são enterradas vivas nas tribos Yanomami,
sob a tutela cúmplice dos neomissionários
Algumas mães índias, contrariando os costumes da tribo por amor materno, fogem para o mundo civilizado com a ajuda de missionários protestantes, a fim de salvarem a vida de seus filhos. Mas o CIMI, em coro com a FUNAI, se posiciona contra qualquer intervenção, assumindo uma postura que indica que, para os "neomissionários", a preservação das culturas indígenas vale mais do que a vida indefesa das crianças!
No próprio site do CIMI há um texto de uma antropóloga que argumenta, por exemplo, que o assassínio de crianças indefesas da etnia Yanomami faz parte de uma estratégia de sobrevivência da tribo, em razão da escassez de alimentos na floresta. Ora, se a tribo não pode alimentar bem todas as crianças que nascem, não seria obrigação dos missionários que se dizem "cristãos" ensinar-lhes técnicas modernas e produtivas de agricultura, tal como fizeram os primeiros jesuítas pelos tupis? Ou por que não trazê-los para o mundo civilizado, onde nenhuma criança precisa morrer por escassez de comida?
A tribo Yanomami é mais um exemplo de como as formas de organização social coletivistas podem ser atrozes e desumanas, pois nestas sociedades os direitos das pessoas individuais são frequentemente violados em nome de uma primazia da coletividade. Basta considerar também os exemplos de Cuba, da Coréia do Norte, da extinta URSS, do Camboja de Pol Pot e de outros países impregnados por ideologias coletivistas, onde os direitos naturais individuais e as liberdades mais fundamentais são constantemente espezinhados em nome de um pretenso bem coletivo. 
É intolerável que existam clérigos "católicos" que defendam o suposto "direito" indígena ao infanticídio! Esses apologistas da barbárie já deveriam ter sido há muito tempo excomungados e, no caso dos estrangeiros, extraditados do Brasil e declarados persona non grata!
No entanto, é bom que nós também façamos um mea culpa no sentido de reconhecer que ficamos de braços cruzados por tempo demais e demoramos muito para começar a reagir a esse pandemônio relativista intraeclesial!
Muito antes do Sínodo da Amazônia já havia a Primeira Assembleia Nacional da Pastoral Indige­nista declarando: "Os índios já vivem as bem-aventuranças: não co­nhecem a propriedade privada, o lu­cro, a competição.". 
Já havia o plano pastoral dos Bispos da Amazônia prescrevendo: "A principal missão da Igreja não é converter os índios à Re­ligião de Jesus Cristo, mas conservar-­lhes o estado tribal.". 
Já tínhamos Dom Tomás Bal­duíno, famoso líder da Comissão Pastoral da Terra (CPT), fulminando: "Os po­vos indígenas são os verdadeiros evan­gelizadores do mundo.... Vivendo em regime comunitário, os índios não pre­cisam da Igreja.".
Heresias execrandas como essas deveriam nos interpelar e mover ao combate! Elas manifestam um profundo desprezo pelo tesouro precioso confiado por Jesus Cristo à Sua Igreja, uma descrença abissal na importância sobrenatural da mensagem cristã e uma tremenda falta de caridade para com os povos não-redimidos.
É lamentável que tantos clérigos na alta hierarquia da Igreja hoje negligenciem aqueles princípios luminosos que por tantos séculos impulsionaram as missões e a ação católica no mundo: “Salus Animarum Suprema Lex” (A Salvação das Almas é a Lei Suprema), “Omnia Ad Majorem Dei Gloriam et Salus Animarum” (Tudo para a Maior Glória de Deus e a Salvação das Almas) ou “Instaurare Omnia In Christo” (Restaurar Todas as Coisas em Cristo).
Mas, se a neomissiologia não nasceu ontem, por que, então, estamos tão surpresos com os disparates do Instrumentum Laboris do Sínodo da Amazônia? Já havia discursos heréticos e apóstatas sendo largamente e impunemente difundidos na Igreja muito antes disso! Por que não começamos a reagir décadas atrás, antes que essa mentalidade contaminasse e ganhasse espaço e influência no próprio Vaticano?
Ninguém ignora que os documentos oficiais do S. Magistério jamais deram respaldo a essa loucura. O problema é que a falta de reconhecimento oficial não impede que uma ideologia se alastre e infecte até as esferas mais proeminentes. Não surpreende que a CNBB, em sua página no Facebook, esteja ostentando o apoio dos luteranos, anglicanos e outros protestantes para este sínodo, pois das fontes católicas ela sabe que não o tem! O próprio Concílio Vaticano II não dá o mínimo respaldo à neomissiologia relativista! Vejamos o que prescreve o concílio no seu Decreto Ad Gentes:
 1 - Esforçar-se por converter os povos ainda não evangelizados é um ato de caridade e de solicitude para com as almas que Nosso Senhor deseja salvar. (nº 7 - p. 442 e 443)
 2 - Quando anuncia o Evangelho aos povos e exorta-os a se converterem à Fé cristã, a Igreja cumpre um mandato do próprio Cristo (proêmio do Decreto). [Referência a Mt 28, 18-20 e Mc 16,15]
 3 - Convencer os gentios a assimilarem apenas uma fé inerte em Jesus, sem nenhum compromisso de conformarem os próprios costumes aos preceitos do Senhor, sem nenhuma mudança substancial nas crenças e no modo de vida, não é o bastante! O missionário deve pregar a todos a adesão total e a prática efetiva dos ensinamentos que Cristo nos deixou. (nº 5 - p. 437)
 4 - Expandir a fé católica é um sagrado dever e uma exigência intrínseca à própria natureza da Igreja (proêmio e nº 6 -  p. 432 e 441).
5 - O neoconvertido, no processo de passagem do paganismo ao cristianismo, do homem velho ao homem novo, deve progressivamente romper com os costumes e crenças incompatíveis com a fé cristã (nº 13 - p. 451)
6 - Não deve haver qualquer sincretismo nas igrejas jovens, isto é, nas comunidades recém-convertidas (nº 19 e 22 - p. 461 e 467) [Não são admissíveis comunidades "semicristãs". Os resquícios de crenças pagãs não podem permanecer misturados à Verdade de Cristo, pois poderiam comprometer a eficácia salvífica da mesma.]
Mesmo o Concílio Vaticano II, embora muito contestado por suas modernizações,
não chancelou as insanidades da neomissiologia.
Portanto, as disposições preliminares do Sínodo da Amazônia e a neomissiologia que o fundamenta traem patentemente o próprio Concílio Vaticano II!
Cabe a nós, portanto, cessar toda omissão frente a esse descalabro e fazer oposição aberta às premissas deste sínodo e inclusive às suas repercussões teológicas, litúrgicas e pastorais que certamente chegarão ou já estão chegando em nossas dioceses e paróquias!
Façamos eco às contestações dos cardeais Müller, Burke e Brandmüller, dos bispos Schneider e Azcona e de todos os prelados católicos que têm tido a coragem de questionar as venenosas pretensões deste sínodo! Ouçamos também os apelos do cardeal Burke e do bispo Dom Athanasius Schneider por 40 dias de jejum e oração, até o dia 26 de outubro, para que o sombrio Instrumentum Laboris do sínodo seja decididamente reprovado e exprobrado pela Santa Sé.
Corajosa ação católica em prol da verdade, jejum e uma vida de oração contínua e devota hão de colocar a Igreja novamente nos trilhos, com o auxílio seguro da Graça Divina! Confiemos! Façamos a nossa parte e Deus não nos deixará sem resposta!
Encerro este artigo deixando sugestões de leituras e alguns filmes concernentes às questões aqui levantadas.
Decreto Ad Gentes do Concílio Vaticano II:
Declaração Dominus Iesus, Sobre a Unicidade e a Universalidade Salvífica de Jesus Cristo e da Igreja:
Nota Doutrinal Sobre Alguns Aspectos da Evangelização, S. Congregação para a Doutrina da Fé (2007):
Livro Introdução ao Cristianismo, de Joseph Ratzinger:
Artigo Fé, Verdade e Cultura, do mesmo Ratzinger:
Livro Sete Mentiras sobre a Igreja Católica, de Diane Moczar PhD:
Livro Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental, de Thomas E. Woods Jr. PhD:

Filmes que retratam a realidade deplorável dos povos não-cristianizados e os atos de coragem, heroísmo e fé ardente dos antigos missionários católicos:
Molokai (ou Damião, o Santo de Molokai), sobre a atividade missionária de S. Damião de Veuster juntos aos leprosos havaianos.
A Missão (The Mission), filme vencedor da Palma de Ouro e de um Oscar, sobre as missões jesuíticas sulamericanas durante o período colonial.

O Manto Negro (Black Robe), longa-metragem sobre as missões junto às ferozes tribos no Canadá.
Silêncio, filme de Martin Scorcese sobre as cruéis perseguições aos padres missionários e fiéis católicos no Japão seiscentista.
Apocalypto, filme de Mel Gibson sobre a realidade brutal dos impérios nativos da América pré-colombiana.
A Igreja Católica: Construtora da Civilizaçãodocumentário da EWTN apresentado por Thomas E. Woods Jr. PhD. O apresentador recorda as incontáveis contribuições católicas para a grande parcela da humanidade resgatada das trevas do barbarismo pagão mediante séculos de derramamento de muito suor e sangue pelos missionários. (Disponível no Youtube: https://bit.ly/2mhBf7b)

quinta-feira, 28 de março de 2019

Racialismo branco para confrontar a chatice do "orgulho negro"?


Parece haver um nascente movimento de afirmação étnica e cultural europeia se erguendo para fazer frente ao africanismo fomentado pelas instituições de ensino e pela mídia de massas. Trata-se de uma reação ao insistente e aborrecedor discurso do “movimento negro”. Neste sentido, há uma página no Facebook intitulada "Movimento Branco". Nela, lemos o seguinte.

Sobre a notícia "Com a ascensão do paganismo nórdico, número de adoradores de Thor duplica na Islândia":

"Algumas pessoas estão se convertendo às religiões dos seus antepassados distantes. Que magnífico! [...] Para defender a Europa, as comunidades eurodescendentes fora dela, a raça branca, os idiomas, as culturas e os estilos de vida delas, não precisamos ter uma religião, necessariamente. Porém, se sentirmos essa necessidade, o ideal é que seja alguma pagã europeia, preferencialmente, da sua ancestralidade majoritária."

Sobre "LGBTs brancos":

"Lembrando que LGBTs assumidos formam uma parcela populacional considerável, 5-10%, dependendo do país. Seria melhor se os LGBTs brancos se sentissem representados pela direita e pelo movimento branco, defendessem a cultura e os valores europeus, casassem entre si, adotassem ou contratassem barrigas de aluguéis (sic) para ter filhos brancos. Vocês não acham?"
Que maravilha! O “movimento branco” facebuqueano é, além de racialista, filo-pagão e pró-gayzismo! Sim, senhor. Estão de parabéns! hahah

(Nessas ocasiões eu agradeço a Deus não só por ter nascido num país católico, cuja fé "não faz distinção entre judeus e gregos", mas também por ser mestiço e ter nascido num país que desde os seus primórdios incentiva a mestiçagem como forma de estimular a fraternidade entre os povos e evitar o surgimento de tolices racialistas quaisquer. Viva o Caramuru! Viva Bonifácio!)

Veja, é estultice querer combater o africanismo com europeísmos. Combater racialismo com outro racialismo é como combater o sarampo com uma cepa de varíola! Vai dar errado na certa, pois ambos são doenças!
Qualquer forma de racialismo só pode ser combatida com a afirmação científica (e cristã) da indistinção essencial entre as raças humanas (embora haja evidentes distinções acidentais).

O racialismo só pode ser eficazmente combatido pela afirmação da humanidade intrínseca que torna o nórdico sueco semelhante, próximo, irmão até do mais pequeno e enegrecido aborígene australiano. (Eles são menos distintos entre si do que um poodle é distinto de um rottweiler, embora ambos sejam cães como os primeiros são ambos homens.)

Mas a cultura europeia não é mesmo superior?

Não é tão simples. O progresso civilizacional que a Europa experimentou a partir da idade média deve-se a três fatores: dois menores e internos (mediterrâneos, na verdade) e um externo e maior, mais importante.

O fator civilizacional externo, maior e mais importante é o cristianismo, oriundo do Oriente. Sem ele, a história da Europa teria sido muito diferente (e certamente muito pior).

Os outros dois menores são a cultura grega e certas contribuições do império romano, como a sua jurisprudência, a organização política e o trânsito de mercadorias e informações dentro do império, a difusão de elementos culturais de raiz helênica e de uma língua comum, entre outros.
Sem esses fatores civilizacionais, a Europa central e setentrional (Áustria, Alemanha, Polônia, França, Inglaterra, Holanda, Bélgica, Suécia, Rússia, etc.) seriam nada, continuariam sendo povos culturalmente irrelevantes e bárbaros.

As sociedades germânica, eslava, saxã ou celta antigas, pré-cristãs, eram bastante rudimentares e menos evoluídas do que as sociedades indiana ou chinesa, por exemplo.

Por outro lado, com a difusão do helenismo, o norte da África teve um período civilizacional consideravelmente mais avançado que a Europa setentrional. Basta pensar no que foi a grande biblioteca de Alexandria, por exemplo. E a Etiópia teve um reino cristão próspero bem antes de o norte da Europa ser resgatado das trevas do paganismo e da barbárie.

Talvez possamos dizer até que a Europa é mais devedora do que credora dos elementos que formaram a civilização europeia. (Exceto a Grécia, naturalmente.)

África e Oriente Médio só não alcançaram o mesmo nível de civilização que a Europa atingiu na Idade Média tardia porque naquelas regiões o desenvolvimento foi abortado por um elemento de retrocesso civilizacional: o islamismo. (Este trouxe, em certo sentido, um neobarbarismo, conservando práticas como a captura e comércio de escravos, por exemplo.)

Sociedades islâmicas até assimilaram elementos da cultura helênica (há quem diga que o próprio Aristóteles chegou ao conhecimento dos europeus e foi estudado pela escolástica através dos árabes) e não se pode dizer que eram sociedades desorganizadas ou avessas às ciências, mas o cristianismo provou-se certamente mais favorável ao progresso intelectual e moral dos povos.

De qualquer forma, não é exato dizer que "as culturas europeias" (no plural) foram desde sempre mais civilizadas ou desenvolvidas do que as africanas, as asiáticas ou as ameríndias, a menos que ignoremos o período pagão, pré-cristão do continente europeu.

Verdade seja dita, a Europa central e setentrional era um pântano pagão bárbaro até o cristianismo vir do Oriente e começar a transformá-la numa civilização decente. E esse processo levou vários e vários séculos pra ser concluído.
Um saxão (europeu) do séc. I, por exemplo, era provavelmente mais atrasado em termos socioculturais e tecnológicos do que um inca (ameríndio) ou um egípcio (africano). A sorte das culturas primitivas geralmente só muda quando elas são finalmente redimidas e libertadas de seus grilhões ancestrais e seus entraves sociais pelo anúncio do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Mais tarde, todas as ideologias que afundaram o Brasil e outros países do terceiro mundo em crises e retrocessos foram importadas da Europa – desde o positivismo comteano (que, em conluio com o republicanismo liberal maçônico, favoreceu o golpe na nossa modelar monarquia constitucional parlamentarista) até o socialismo gramsciano petista. Foi justamente certa "cultura europeia" pós-moderna que desgraçou não apenas conosco, mas com o Ocidente inteiro.

Sim, certos "eurodescendentes" e suas ideologias estultas foram responsáveis pelo fim do pujante Império do Brasil. "Eurodescendentes" criaram o positivismo comteano, o republicanismo liberal maçônico e o socialismo, cujas variações exterminaram cerca de 100 milhões de pessoas só no século passado, sem falar em diversas outras belas porcarias ideológicas importadas da Europa.

Por outro lado, certas partes da África são hoje até um foco de salutar resistência conservadora, como podemos ver no documentário “Cultural Imperialism: The Sexual Rights Agenda” ou nos discursos do cardeal guineano Robert Sarah, por exemplo.

Antes mesmo de a ciência moderna constatar a indistinção essencial entre todos os homens das mais variadas etnias, o cristianismo já havia abolido toda separação entre os homens. A Nova Aliança em Cristo destrói o muro que separava os hebreus dos gentios.
A Epifania do Senhor ante os "magos do Oriente" é um símbolo da
Verdade Encarnada que veio redimir e congregar indistintamente todos os povos
Saulo, israelita orgulhoso, por graça de Cristo acaba indo pregar aos "gentios" do norte e termina chamando-os de "irmãos".

Marcos vai aos pregar egípcios. (Os cristãos coptas do Egito consideram consideram o evangelista como o apóstolo particular deles.)

Tomé teria percorrido grandes distâncias na Ásia e chegado até a longínqua Índia!
Felipe oferece o batismo ao eunuco da Etiópia que ouve o seu Evangelho, fazendo-o seu irmão.

Não há guetos e comunidades étnicas fechadas para um autêntico cristão.

É claro que não há nada de errado no fato de alguém ver mais beleza em pele clara, olhos azuis, cabelos louros e modos franceses do que em pele escura, cabelo black power e modos congoleses. (Ou vice-e-versa.) Até aí é só uma questão de gosto.

Ninguém é moralmente obrigado a se casar e ter filhos com pessoa de outra raça e ninguém precisa comungar das ideias de Bonifácio e achar a miscigenação uma coisa ótima (embora também não dê pra negar que ela favorece mais a harmonia e a coesão social do que um purismo racialista qualquer).

Contudo, é preciso entender também que o projeto de poder da esquerda pós-moderna (a chamada New Left) inclui retomar, em maior escala, o "divide et impera", que já era uma estratégia de conquista conhecida dos romanos.
A esquerda simula ser "a voz" dos negros e pardos, que são a maioria, a fim de falar por eles e
cooptá-los politicamente. Quando, contra ela, se ergue um "movimento branco", é como se este estivesse
reconhecendo-a como tal e dando a ela uma legitimidade neste papel capaz de conferir um poder incalculável.
O jogo do esquerdismo hoje é dividir a sociedade (em raças e outros grupos identitários, minorias sexuais, etc.) para gerar conflitos artificiais, fragmentar e sabotar a organização civil, tornando mais fácil o controle desses grupos pelo partido.

Assim sendo, apoiar um movimento afirmativo branco ou uma "legião identitária" (outra iniciativa online que vai na mesma linha de afirmação de superioridade euro-étnica) para fazer oposição ao "movimento negro" e seu discurso de afirmação "afro" é o mesmo que aceitar o projeto de divisão; é cair, como patinho, no jogo da esquerda.

Nunca passou pelas cabecinhas alvas dos líderes do movimento branco que eles estão apenas dançando conforme a música daqueles manipuladores que são, supostamente, os seus maiores adversários?
A "Legião Identitária" promove o racialismo branco e o paganismo de raiz europeia.
Porém, sua página no Facebook é seguida por muitos mestiços e até negros conservadores
que, inadvertidamente, compartilham as postagens da page contra o discurso e a militância de esquerda
É ótimo para o esquerdismo que haja um "movimento branco" para ser contraposto ao "movimento negro". E quanto mais supremacista e/ou segregacionista for, melhor! Isto é um belo presente para os intelectuais progressistas e seus planejamentos estratégicos junto aos partidos comunistas! É autossabotagem!

(Além de consistir num inegável e triste retrocesso científico, ético e espiritual, pelas razões já mencionadas.)

Mas, enfim, se um Estado se pretende adepto de um liberalismo democrático, o direito a um purismo racialista branco, por mais tolo que seja, não pode ser legalmente negado enquanto houver, de outra parte, um racialismo negro sendo fomentado pela mídia e pelas universidades.

E assim ambos os lados vão seguindo, aferrando-se a frivolidades "de raça" e ajudando a dividir a nação e fragmentar a sociedade civil, do jeito que o diabo gosta!

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Verdade do cristianismo? - Por Joseph Ratzinger


ROMA, quarta-feira, 11 de maio de 2005 (Artigo originalmente publicado por ZENIT.org).- Publicamos a conferência ministrada pelo cardeal Joseph Ratzinger na Sorbona de Paris no dia 27 de novembro de 1999 sobre «Verdade do cristianismo?».
Ao final do segundo milênio, o cristianismo vive, no terreno de sua expansão original, a Europa, uma profunda crise que resulta de sua pretensão à verdade. Esta crise tem uma dimensão dupla; primeiro, é colocada cada vez mais a questão de se é justo, no fundo, aplicar a noção de verdade à religião: em outros termos, se é dado ao homem conhecer a verdade propriamente dita sobre Deus e as coisas divinas.

O homem contemporâneo se reconhece melhor na parábola budista do elefante e os cegos: um rei do norte da Índia reuniu um dia em um mesmo lugar a todos os habitantes cegos da cidade. Depois fez passar diante dos assistentes a um elefante. Permitiu que uns tocassem a cabeça, dizendo: isto é um elefante. Outros tocaram a orelha ou a presa, a tromba, a pata, o traseiro, os pêlos da cauda. Em seguida, o rei perguntou a cada um: como é um elefante?, e segundo a parte que haviam tocado, responderam: é como um cesto de vime, é como um recipiente, é como a barra de um arado, é como um depósito, como um pilar, como um morteiro, uma vassoura... Então — continua a parábola —, começaram a brigar e a gritar “o elefante é assim ou assado” até que avançaram uns contra outros a socos, para grande diversão do rei.

A questão das religiões se revela aos homens de hoje como a questão destes homens que nasceram cegos. É o que parece; frente aos segredos do divino, somos como cegos de nascença. Para o pensamento contemporâneo, o cristianismo de maneira nenhuma se acha em uma postura mais positiva que outras. Ao contrário, com sua pretensão de verdade, parece particularmente cego frente ao limite de nosso conhecimento do divino, e se distingue por um fanatismo singularmente insensato, que toma o que irremediavelmente é a parte que a experiência pessoal conseguiu agarrar, pelo todo.

Este ceticismo geral diante da pretensão de verdade em matéria religiosa se alimenta também dos questionamentos da ciência moderna sobre as origens e o objeto da esfera cristã. É como se a teoria da evolução tivesse ultrapassado a teoria da criação, e os conhecimentos sobre a origem do homem, a doutrina do pecado original: a exegese crítica relativiza a figura de Jesus e duvida da sua consciência de Filho; a origem da Igreja em Jesus parece incerta, etc.

O “fim da metafísica” propiciou que o fundamento filosófico do cristianismo se tornasse problemático, enquanto que os modernos métodos históricos colocaram as bases históricas dele sob uma luz ambígua. Assim, ficou fácil reduzir os conteúdos cristãos a um discurso simbólico, sem lhes atribuir uma verdade superior à dos mitos da história das religiões: eles são percebidos como uma forma de experiência religiosa que deve se situar com humildade ao lado de outras.

Nesse sentido, ainda é possível, aparentemente, continuar sendo cristão; as expressões do cristianismo continuam a ser usadas, embora sua pretensão, é claro, mudou da cabeça aos pés: a verdade que foi para o homem uma força obrigatória e uma promessa confiável, é agora uma expressão cultural da sensibilidade religiosa geral, expressão que, dão a entender, é o produto das circunstâncias de nossa origem européia.

No começo do século XX, Ernst Troeltsch formulou filosófica e teologicamente esta renúncia interior do cristianismo com relação à sua pretensão universal original, que só podia se fundar sobre a sua pretensão de verdade. Ele se convenceu de que as culturas são insuperáveis e de que a religião está ligada às culturas. O cristianismo não é mais do que o ângulo do rosto de Deus que está voltado para a Europa. As “particularidades individuais dos círculos culturais e raciais” e “as particularidades de suas grandes formações religiosas em conjunto” alcançam o nível de uma instância última: “quem se atreve a comparar valores de forma decisiva? Só Deus, que está na origem destas diferenças, pode fazê-lo”.

O cego de nascimento sabe que não nasceu para ser cego; não deixará de interrogar-se sobre o porquê de sua cegueira e como livrar-se dela. Só na aparência o homem se resignou ao veredicto de ter nascido cego, com relação à única realidade que em última instância conta em sua vida. A empresa titânica de se apropriar do mundo, de extrair de nossa vida e em favor dela tudo o que for possível, prova —tanto como os fulgores de um culto feito de transe, de transgressão e de autodestruição—, que o homem não se satisfaz com este julgamento. Se não souber de onde vem nem por que existe, não é acaso em todo seu ser uma criatura falida?

Que enganoso é esse pretenso adeus definitivo à verdade divina e à essência de nosso eu, e essa aparente satisfação de já não ter que se ocupar mais disso. O homem não pode se resignar a ser e permanecer em essência cego de nascença. O adeus à verdade nunca é definitivo. Sendo assim, deve ser reproposta a anacrônica pergunta de “se o cristianismo for verdade”, por superficial e insolúvel que pareça a muitos. Como repropô-la?

Sem dúvida a teologia cristã deverá examinar minuciosamente, sem medo de se expor, as diversas instâncias que se elevaram contra a pretensão cristã de verdade em matéria filosófica, nas ciências naturais, na história natural. Mas também deve obter uma visão que abranja o problema inteiro da essência do cristianismo, de sua postura na história das religiões e de seu lugar na vida humana. Queria dar um passo nesta direção, me concentrando na pergunta de como em sua origens o próprio cristianismo percebeu a sua pretensão no universo das religiões.

Até onde entendo, nenhum texto da Antigüidade cristã é tão esclarecedor a esse respeito como a discussão de Santo Agostinho com a filosofia religiosa do “mais douto dos romanos”, Marco Terêncio Varrão (127 a.C.). Varrão compartilhava a imagem estóica de Deus e do mundo. Definia a Deus como animam motu ac ratione mundum gubernantem (“a alma que dirige o mundo pelo movimento e a razão”), em outras palavras, como a alma do mundo que os gregos chamaram Cosmos: hunc ipsum mundum esse deum. À alma do mundo, certo, não se rendia culto. Não foi o objeto de uma religio.

Em outros termos, verdade e religião, conhecimento racional e ordem cultual se localizam em dois planos totalmente diferentes. A ordem cultual, o mundo concreto da religião, não pertence à ordem da res, da realidade como tal, mas sim ao dos costumes (mores). Os deuses não criaram o Estado, o Estado estabeleceu os deuses cuja veneração é indispensável para a ordem do Estado e o bom comportamento dos cidadãos. A religião é, em essência, um fenômeno político. Varrão distingue três tipos de “teologia”, entendendo por teologia a ratio quae de diis explicatur —a compreensão e a explicação do divino, poderia ser traduzida. Tais são a theologia mythica, a theologia civilis e a theologia naturalis. 

Mediante quatro definições, esclarece o que entende por estas “teologias”. A primeira definição se refere aos três teólogos classificados segundo estas três teologias: os teólogos da teologia mítica são os poetas, porque compuseram cantos sobre os deuses e porque são também os poetas da divindade. Os teólogos da teologia física (natural) são os filósofos, quer dizer os eruditos, os pensadores que, além dos costumes, se interrogam sobre a realidade, sobre a verdade; os teólogos da teologia civil são os “povos”, que não optaram por aliar-se aos filósofos (à verdade) mas aos poetas, às suas visões poéticas, às suas imagens e figuras.

A segunda definição concerne ao lugar da realidade onde cada teologia se localiza. A teologia mítica se estabelece no teatro, o qual se circunscrevia por completo num âmbito religioso, de culto; de acordo com a opinião imperante, os espetáculos se instauraram em Roma por ordem dos deuses. A teologia política se acomoda na urbs, enquanto que o espaço da teologia natural é o cosmos. A terceira definição se refere ao conteúdo das três teologias: a teologia mítica abrange as fábulas que os poetas criam a respeito dos deuses; a teologia do Estado, o culto; a teologia natural responde à pergunta: “quem são os deuses?” Aqui vale a pena escutar com mais cuidado: “se eles são feitos de fogo, como acreditou Heráclito, se de números, como acreditou Pitágoras, se de átomos, como Epicuro, e outros desvarios semelhantes, mais adequados para serem ouvidos entre paredes, nas escolas, do que fora, no trato humano e na conversação social”.1

Aparece, com toda clareza, que esta teologia natural é uma desmitificação ou, melhor ainda, uma racionalidade que, com seu olhar crítico, supera a aparência mítica que analisa, mediante as ciências naturais. Culto e conhecimento se separam por completo. O culto continua sendo necessário, pois é assunto de utilidade política; o conhecimento tem um efeito destruidor sobre a religião, e por isso não deve ser exposto em praça pública. Finalmente, fica a quarta definição: Que tipo de realidade constituem as diversas teologias?

Varrão responde: A teologia natural se ocupa da “natureza dos deuses” (que quase não existem), as outras duas teologias tratam de divina instituta hominum —das instituições divinas dos homens. Assim, toda a diferença se reduz à que existe entre a física em seu sentido antigo e a religião cultual. “A teologia civil finalmente não tem deus algum, somente a ‘religião’, a ‘teologia natural’ não tem religião, mas sim somente uma divindade”. Não, não pode ter religião alguma, porque não é possível dirigir religiosamente a palavra a seu deus: fogo, número, átomos. Assim, religio (termo que designa essencialmente o culto) e realidade, o conhecimento racional da realidade, localizam-se como duas esferas separadas, uma junto à outra.

A religio não encontra sua justificação na realidade do divino, mas sim de sua função política. É uma instituição de que o Estado precisa para existir. Sem dúvida, achamo-nos neste ponto em uma fase tardia da religião, em que a candura do mundo religioso se racha e inicia sua decomposição. Entretanto, o vínculo essencial da religião com a comunidade do Estado penetra ainda mais a fundo. O culto é, em última instância, uma ordem positiva, e como tal não deve se medir com a questão da verdade.

Em uma época em que a função política tinha ainda forças suficientes para justificar-se como tal, Varrão podia continuar defendendo o culto politicamente motivado, a partir de uma concepção um tanto crua da racionalidade e da ausência da verdade, enquanto que o neoplatonismo procuraria logo outra saída para a crise, um meio no que se apoiará mais tarde o imperador Juliano, em um esforço por restabelecer a religião romana de Estado: o que dizem os poetas são imagens que não devem entender-se de forma física; são imagens que, entretanto, dizem o inefável para todos aqueles a quem está proibido o caminho real da união mística. Embora as imagens como tais não são verdadeiras, elas se justificam nesse momento como aproximações do que, necessariamente, deve sempre permanecer inefável.

Mas já nos adiantamos. Com efeito, a postura neoplatônica, por sua parte, é já uma reação contra a postura cristã, diante do tema da fundação cristã do culto e da fé que está em sua origem, da topografia desta fé na tipologia das religiões. Voltemos para Agostinho. Onde situa ao cristianismo na tríade das religiões de Varrão? Surpreendentemente, sem sequer duvidar, atribui ao cristianismo o seu lugar no domínio da teologia física, no domínio da racionalidade filosófica. Isto o coloca em perfeita continuidade com os teólogos anteriores ao cristianismo, os Apologistas do século II, e inclusive, com Paulo e sua topografia da realidade cristã no primeiro capítulo da epístola aos romanos: uma topografia que, por seu lado, se apóia na teologia veterotestamentária da Sabedoria — e remonta, anteriormente a esta, até os Salmos e aos seus escárnios dos deuses.

O cristianismo, nesta perspectiva, tem os seus precursores e a sua preparação interior na racionalidade filosófica, e não nas religiões. O cristianismo, para Agostinho e de acordo com a tradição bíblica, que para ele era normativa, não se funda em imagens e pressentimentos míticos, cuja justificação se acha ao fim e ao cabo em sua utilidade política, mas sim, ao contrário, tende à esfera divina que é capaz de advertir a análise racional da realidade. Em outras palavras, Agostinho identifica o monoteísmo bíblico com as visões filosóficas sobre o fundamento do mundo, que se formaram, segundo diversas variações, na filosofia antiga. Isto é o que se entende quando, do areópago de São Paulo, o cristianismo se apresenta com a pretensão de ser a religio vera.

Significa: a fé cristã não se apóia na poesia nem na política, essas duas grandes fontes da religião; ela se apóia no conhecimento. Venera a este Ser que se acha no fundamento de tudo o que existe, o “Deus verdadeiro”. No cristianismo, a racionalidade se tornou religião, e não seu adversário. Por conseguinte, porque o cristianismo se entendeu como a vitória da desmitificação, a vitória do conhecimento e, com ela, a da verdade, devia necessariamente se considerar universal e ser levado a todos os povos: não como uma religião específica que reprime a outras, não como um imperialismo religioso, mas sim, mais exatamente, como a verdade que torna supérflua a aparência.

E é por isso justamente que, na ampla tolerância dos politeísmos, ele aparece necessariamente como intolerável, e até como inimizade da religião, como “ateísmo”. Não se limitou à relatividade e à convertibilidade das imagens, de sorte que incomodou em especial a utilidade política das religiões, e pôs em perigo os fundamentos do Estado, ao não querer ser uma religião entre outras, mas sim a vitória da inteligência sobre o mundo das religiões.

Por outro lado, a esta topografia da esfera cristã no cosmos da religião e da filosofia, também se acrescenta a força de penetração do cristianismo. Desde antes de a missão cristã ter início, nos círculos cultos da Antigüidade, foi buscada, na figura do “homem temeroso de Deus”, uma aliança com a fé judaica. Esta era percebida como uma imagem religiosa do monoteísmo filosófico, em correspondência com as exigências da razão, ao mesmo tempo que com a necessidade religiosa do homem. A filosofia não podia responder a esta necessidade por si só: não se reza a um deus que só é pensado. Entretanto, quando o deus que o pensamento achou se deixa encontrar no coração da religião como um deus que fala e age, o pensamento e a fé se reconciliam.

Nesta aliança com a sinagoga, permanecia porém um fundo insatisfatório: o não-judeu não era mais do que um sócio, não obtinha uma inserção completa. Esta amarra foi rompida pela figura de Cristo no cristianismo, conforme a interpretação de Paulo. A partir daí, o monoteísmo religioso do judaísmo se tornou universal, e a unidade entre pensamento e fé, a religio vera, se tornou acessível a todos. Justino o filósofo, Justino mártir (+167) pode ser visto como uma figura sintomática deste acesso ao cristianismo: ele estudou todas as filosofias e, ao final, reconheceu no cristianismo a vera philosophia.

Ao se converter ao cristianismo, não renegou, segundo a sua própria convicção, a filosofia; pelo contrário, só a partir daí ele se tornou realmente filósofo. A convicção de que o cristianismo é uma filosofia, a filosofia perfeita, a que pôde penetrar na verdade, permaneceu vigente tempo depois da era patrística. Está presente ainda no século XIV, na teologia bizantina de Nicolau Cabassilas, de uma maneira totalmente normal. Certamente, não se entendia com isso unicamente a filosofia como uma disciplina acadêmica de natureza meramente teórica, mas também, e sobretudo, no plano prático, como a arte de viver e de morrer justamente; uma arte que, no entanto, só se obtém à luz da verdade.

A união da racionalidade e da fé, que se deu no desenvolvimento da missão cristã e na edificação da teologia cristã, trouxe, é claro, corretivos decisivos na imagem filosófica de Deus; destes, dois em particular devem ser mencionados. O primeiro consiste em que o Deus no qual os cristãos acreditam e veneram, ao contrário dos deuses míticos e políticos, é verdadeiramente natura Deus; nisto, satisfaz as exigências da racionalidade filosófica. Mas, ao mesmo tempo, também é válido o outro aspecto: non tamen omnis natura est Deus: não toda natureza é Deus. Deus é Deus por natureza, mas a natureza como tal não é Deus.

Uma separação é feita entre a natureza universal e o ser que a funda, que lhe dá origem. Só então a física e a metafísica se distinguem claramente uma da outra. Só o Deus verdadeiro que podemos reconhecer pelo pensamento na natureza é objeto de preces. Embora seja mais do que a natureza: Ele a precede, ela é sua criatura. A esta separação entre a natureza e Deus se acrescenta um segundo achado, ainda mais importante: a Deus, à natureza, à alma do mundo, ou qual for o nome recebia, não era possível rezar; como já vimos, não era um “deus religioso”.

Mas agora, conforme já a fé do Antigo Testamento e mais ainda a do Novo Testamento enunciava, este deus que precede à natureza se dirigiu aos homens. Por não ser apenas natureza, ele não é um deus silencioso. Entrou na história, veio ao encontro do homem, e por isso o homem pode agora se encontrar com ele. Pode se vincular com Deus, porque Deus se vinculou ao homem. Ambas as dimensões da religião, a natureza em seu reino eterno e a necessidade de salvação do homem em sofrimento e em luta, que estavam sempre separadas, estão vinculadas. A racionalidade pode se tornar uma religião, porque o Deus da racionalidade entrou, por sua vez, na religião. O elemento que a fé finalmente reivindica, a palavra histórica de Deus, não é acaso o pressuposto para que a religião possa se dirigir agora ao Deus filosófico, que não é um Deus meramente filosófico e que, no entanto, não desdenha o conhecimento filosófico, e sim o assume?

Algo surpreendente se torna aqui manifesto: os dois princípios fundamentais, contrários na aparência ao cristianismo: o vínculo com a metafísica e o vínculo com a história, se condicionam e remetem um ao outro. Somam juntos a apologia do cristianismo como religio vera. Se, portanto, se pode dizer que a vitória do cristianismo sobre as religiões pagãs foi possível graças à sua pretensão de inteligibilidade, terá que acrescentar a isto um segundo motivo de igual importância.

Consiste, para dizê-lo em termos muito gerais, na seriedade moral do cristianismo; característica que, de resto, Paulo tinha também aproximado da racionalidade da fé cristã. Aquilo que a lei procura, no fundo, as exigências essenciais, iluminadas pela fé cristã, do Deus único na vida do homem, é aquilo que satisfaz as exigências do coração humano, de cada homem; de sorte que, quando esta lei lhe é apresentada, ele a reconhece como o Bem. Corresponde ao que “por natureza é bom” (Romanos 2, 14). A alusão à moral estóica, a sua interpretação ética da natureza, é aqui tão manifesta como em outros textos de Paulo; por exemplo, na Epístola aos Filipenses . “Ocupem seu pensamento em tudo o que for verdadeiro, puro, amável, em tudo o que for de boa fama; fazendo tudo aquilo que mereça elogio” (Filipenses, 4: 8).

Assim a unidade fundamental (embora crítica) com a racionalidade filosófica, presente na noção de Deus, é então confirmada e concretizada na unidade, crítica por sua vez, com a moral filosófica. Da mesma forma que, no domínio da religião, o cristianismo transbordava os limites da sabedoria da filosofia de escola, porque precisamente o Deus pensado se deixava encontrar como um Deus vivo; assim, houve aqui também um além da teoria ética em uma práxis moral, vivida e concretizada de maneira comunitária, em que a perspectiva filosófica era transcendida e transportada à ação real, em particular na concentração de toda a moral sob o duplo mandamento do amor de Deus e do próximo.

O cristianismo, poderíamos simplificar, convencia pelo elo entre a fé e a razão, e pela orientação da ação para a caritas, o cuidado caridoso dos doentes, dos pobres e dos fracos, para além de todos os limites da própria condição. Que esta fosse a força o cristianismo, sem dúvida se revela com toda claridade na maneira como o imperador Juliano tentou restabelecer o paganismo sob uma nova forma. Ele, Pontifex maximus da religião restabelecida dos deuses antigos, instituiu uma hierarquia pagã de sacerdotes e metropolitas, até então inexistente. Os sacerdotes deviam ser exemplos de moralidade; deviam se entregar ao amor de Deus (a divindade suprema acima dos deuses) e do próximo.

Estavam obrigados a atos de caridade para com os pobres, não podiam ler as comédias licenciosas nem as novelas eróticas, e deviam pregar nos dias festivos a partir de um argumento filosófico, para instruir e formar o povo. A esse respeito, Teresio Bosi diz, com razão, que o imperador não procurava com isto restabelecer o paganismo, e sim cristianizá-lo, mediante uma síntese forçada, dirigida ao culto dos deuses, entre a racionalidade e a religião. Podemos dizer, se olharmos para trás, que a força que transformou o cristianismo em uma religião mundial consistiu em sua síntese entre razão, fé e vida: esta síntese precisamente acha nas palavras religio vera uma expressão abreviada.

Impõe-se ainda mais a pergunta: por que esta síntese não convence hoje? Por que a racionalidade e o cristianismo se consideram, mais ainda, contraditórios e até excludentes? O que mudou na racionalidade, o que mudou no cristianismo para que seja assim? Antigamente, o neoplatonismo, Porfírio em especial, opôs à síntese cristã uma interpretação diferente da relação entre filosofia e religião, uma interpretação que se entendia como a refundação filosófica da religião dos deuses. Sobre ela, Juliano edificou e fracassou.

Hoje, entretanto, esta outra maneira de harmonizar a religião e a racionalidade é a que parece se impor como a forma de religiosidade adaptada à consciência moderna. Porfírio formula assim sua primeira idéia fundamental: latet omne verum — a verdade está oculta. Recordemos a parábola do elefante, que ilustra esta idéia onde coincidem budismo e neoplatonismo. Segundo ela, não há certeza a respeito da verdade sobre Deus, tão somente opiniões. Na crise de Roma no século IV tardio, o senador Símaco — imagem reflexa de Varrão e de sua teoria da religião — retornou à concepção neoplatônica com fórmulas simples e pragmáticas, que se acham em seu discurso de 384 ante o imperador Valentiniano II, em defesa do paganismo e a favor do restabelecimento da deusa Vitória no senado romano.

Cito só a oração decisiva, já célebre: “Todos veneram uma mesma coisa, pensamos uma mesma coisa, contemplamos as mesmas estrelas, o céu sobre nós é único, envolve-nos um mesmo mundo; pouco importam as formas várias da sabedoria mediante as quais cada qual busca a sua verdade. Não é possível chegar por um só caminho a um mistério tão grande”. Exatamente isto é o que a racionalidade diz hoje: não conhecemos a verdade enquanto tal; por imagens diferentes expressamos, afinal de contas, o mesmo. Um mistério tão grande, o divino, não pode ser reduzido a uma só figura que exclua a todas as outras, a um caminho que serviria a todos.

São muitos os caminhos, muitas as imagens, todas refletem algo de tudo, e nenhuma é por si mesmo o todo. O ethos da tolerância é o de quem reconhece em cada um uma parte da verdade, de quem não coloca o seu por cima do outro e de quem se insere pacificamente na sinfonia polimorfa do eterno Inacessível. Este, com efeito, se dissimula entre os véus dos símbolos, embora estes símbolos são, tal como parece, nossa única possibilidade de alcançar de alguma forma o divino. A pretensão do cristianismo de ser a religio vera teria sido ultrapassada pelo progresso da racionalidade? É indispensável rebaixar o nível de sua pretensão e inseri-la na visão neoplatônica ou budista ou hindu da verdade e do símbolo? Conformar-se, como propôs Troeltsch, em mostrar, do rosto de Deus, o ângulo voltado para os europeus?

Deveria ser dado até mesmo um passo a mais com relação a Troeltsch, que considerava ainda ao cristianismo como a religião adaptada à Europa, tomando em conta que hoje em dia a própria a Europa duvida dessa adaptação? Esta é hoje a pergunta verdadeira que a Igreja e a teologia devem enfrentar. Todas as crises que observamos agora dentro do cristianismo só radicam de maneira muito secundária em problemas institucionais.

Os problemas de instituições e de pessoas na Igreja se derivam, no final, desta pergunta e do seu imenso peso. Ninguém espera que esta provocação fundamental ao termo do segundo milênio cristão ache, nem de longe, uma resposta definitiva numa conferência. Não pode achar em absoluto uma resposta meramente teórica, assim como, por ser atitude última do homem, a religião nunca é apenas teoria. Ela requer esta combinação de conhecimento e de ação que fundou a força de convicção do cristianismo dos Padres.

Isto de maneira nenhuma significa que se podem esquivar as exigências intelectuais do problema, remetendo à necessidade da praxis. Apenas procurarei, para terminar, abrir uma perspectiva que poderia apontar a direção. Vimos que a unidade racional, entre racionalidade e fé, a que Tomás de Aquino deu por fim uma forma sistemática, foi rompida menos pelo desenvolvimento da fé que pelos novos progressos da racionalidade. Como etapas desta mútua separação, poderíamos nomear a Descartes, Spinoza, Kant. A nova síntese unificadora que Hegel tentou não devolveu à fé o seu lugar filosófico, apesar de ter tentado transformá-la em razão e aboli-la como fé.

A este absoluto do espírito, Marx opôs a unicidade da matéria; a filosofia teve que se ater por completo à ciência exata. Só o conhecimento científico exato continuou merecendo o nome de conhecimento. A idéia do divino foi exonerada. A profecia de Augusto Comte, de que um dia haveria uma física do homem e que as grandes perguntas até então a cargo da metafísica deveriam ser tratadas dali em diante tão “positivamente” como tudo o que já é hoje ciência positiva, teve em nosso século XX, na ciências humanas, uma ressonância impressionante. A separação que operou o pensamento cristão entre física e metafísica é relegada cada dia mais ao abandono.

Tudo deve se tornar de novo “física”. Cada vez mais, a teoria da evolução se cristalizou como a via para que desaparecesse para sempre a metafísica, para que a “hipótese de Deus” (Laplace) se tornasse supérflua e se formulasse uma explicação do mundo estritamente “científica”. Uma teoria da evolução que explique de maneira conjunta a soma de toda a realidade se transformou numa espécie de “filosofia primeira”, que representa, digamos, o fundamento verdadeiro da compreensão racional do mundo.

Qualquer tentativa de pôr em jogo outras causas além das elaboradas por esta teoria “positiva”, qualquer intento de “metafísica”, é visto como uma recaída abaixo da razão, como uma perda de nível diante da pretensão universal da ciência. Por isso, a idéia cristã de Deus se considera forçosamente como não científica. A esta idéia não corresponde mais nenhuma theologia physica: só a theologia naturalis é, nesta visão, a doutrina da evolução, e esta precisamente não conhece nenhum Deus, nem Criador no sentido do cristianismo (do judaísmo e do Islã), nem alma do mundo, nem dinamismo interior no sentido da Stoa. Eventualmente, o mundo inteiro poderia ser considerado, no sentido do budismo, como uma aparência, e um nada, como a verdadeira realidade, e justificar assim as formas místicas da religião que não estão, ao menos, em concorrência direta com a razão.

Foi dita então a última palavra? A razão e o cristianismo estão separados de maneira definitiva? Em qualquer caso, não existe caminho que possa evitar a discussão sobre o alcance da doutrina da evolução como filosofia primeira e sobre a exclusividade do método positivo como única forma de ciência e racionalidade. Esta discussão deve ser feita entre ambas as partes com serenidade e na disposição de escutar, o que até agora ainda não aconteceu. Ninguém pode questionar seriamente as provas científicas dos processos microevolutivos.

A respeito, R. Junker e S. Scherer dizem em seu “manual crítico” (kritisches Lesebuch) sobre a evolução: “Semelhantes acontecimentos (os processos microevolutivos) se conhecem bem com base nos processos naturais de variação e de formação. Seu exame, mediante a biologia da evolução, levou a conhecimentos significativos sobre a capacidade genial de adaptação dos sistemas vivos”. Dizem neste sentido que a investigação das origens pode se qualificada com justiça como a disciplina régia da biologia. A Pergunta que o homem de fé formulará diante da razão moderna não se refere a isto, mas sim à extensão de uma philosophia universalis que pretende se transformar em uma explicação geral do real e tende a abolir qualquer outro nível de pensamento.

Na doutrina mesma da evolução, o problema se destaca no trânsito entre a micro e a macro evolução, trânsito do que Szamarthy e Maynard Smith,2 ambos partidários convictos de uma teoria globalizadora da evolução, admitem: “Não há motivo teórico que permita pensar que as linhas evolutivas se tornam mais complexas com o tempo; também não há provas empíricas de que isto suceda”. A pergunta que deve ser formulada aqui vai, para falar a verdade, mais a fundo: a questão é saber se a doutrina da evolução pode se apresentar como uma teoria universal de tudo o que é real, além da qual já não se permitem e nem sequer são necessárias perguntas ulteriores sobre a origem e a natureza das coisas; ou se estas perguntas últimas não transbordam, no fundo, o terreno da investigação aberto às ciências naturais.

Queria expor a pergunta de maneira ainda mais concreta. Será que tudo já foi dito com o tipo de resposta que encontramos, por exemplo, em Popper, assim formulada: “A vida, tal como a conhecemos, consiste em ‘corpos’ físicos (melhor: em processos e estruturas) que resolvem problemas. É o que as diversas espécies ‘aprenderam’ da seleção natural, quer dizer pelo método de reprodução mais variação; um método que, por sua parte, aprendeu-se segundo este mesmo método. trata-se de uma regressão; uma regressão ao infinito...”? Não creio. Afinal de contas, trata-se de uma alternativa que nem as ciências naturais nem a filosofia podem simplesmente resolver.

O ponto está em saber se a razão ou o racional se acham ou não no começo de todas as coisas e no seu fundamento. O ponto está em saber se o real surgiu a partir do acaso e da necessidade (ou, com Popper, com Butler, do lucky cunning [feliz casualidade e previsão]), e por conseguinte, do que não tem razão; se, em outras palavras, a razão é um produto periférico e acidental do irracional e se for finalmente tão insignificante no oceano do irracional, ou se continua sendo verdade o que constitui a convicção fundamental da fé cristã e de sua filosofia: In principio erat Verbum — no começo de todas as coisas está a força criadora da razão.

A fé cristã é, hoje como ontem, a opção pela prioridade da razão e do racional. Esta pergunta última, como se disse, já não se pode resolver com argumentos tirados das ciências naturais, e o mesmo pensamento filosófico encontra aqui os seus limites. Neste sentido, não é possível oferecer uma prova última da opção cristã fundamental. Mas pode a razão, afinal, sem renegar a si mesma, renunciar à prioridade do racional sobre o irracional, à existência original do logos? O modelo hermenêutico que Popper oferece, o qual reaparece sob diversas formas em outras apresentações da “filosofia primeira”, mostra que a razão não pode evitar o pensar o irracional segundo a sua medida, quer dizer, racionalmente (resolver problemas, elaborar métodos), restabelecendo assim, de maneira implícita, a primazia da razão questionada.

Por sua opção em favor da primazia da razão, o cristianismo continua sendo ainda hoje “racionalidade”, e penso que a racionalidade que se desfaz desta opção implicaria, contrariamente às aparências, não uma evolução mas sim uma involução da racionalidade. Vimos anteriormente que, na concepção da Antigüidade cristã, as noções de natureza, homem, Deus, ethos e religião estavam indissoluvelmente vinculadas, e que este vínculo permitiu ao cristianismo divisar a crise dos deuses e a crise da antiga racionalidade. 

A orientação da religião dirigida a uma visão racional do real como tal, o ethos como parte desta visão, e sua aplicação concreta sob a primazia do amor se associaram. A primazia do logos e a primazia do amor se revelaram idênticas. O logos não apareceu apenas como razão matemática na base de todas as coisas, mas sim como um amor criador, ao ponto de se tornar compaixão da criatura. A dimensão cósmica da religião que, na potência do ser, venera o Criador, e a sua dimensão existencial, a questão da redenção, se interpenetraram e se tornaram um só problema.

De fato, uma explicação da realidade que não pode fundar por sua vez um ethos de maneira sensata e compreensiva, é necessariamente insuficiente. Entretanto, é um fato que a teoria da evolução, quando se arrisca a ampliar-se em uma philosophia universalis, tenta também refundar o ethos sobre a base da evolução. Mas este ethos da evolução, que inegavelmente encontra sua noção chave no modelo da seleção, e por conseguinte, na luta pela sobrevivência, na vitória do mais forte, na adaptação obtida, oferece poucos consolos. Mesmo quando se tenta embelezá-lo de várias formas, continua sendo afinal um ethos cruel.

O esforço por destilar o racional a partir de uma realidade em si mesmo insensata, fracassa aqui a olhos vistos. Tudo isto de pouco serve para o que precisamos: uma ética da paz universal, do amor prático ao próximo e da necessária superação do bem individual. A tentativa de devolver, nesta crise da humanidade, um sentido pormenorizado à noção de cristianismo como religio vera, deve apostar, por assim dizer, tanto na ortopráxis como na ortodoxia. Seu conteúdo deverá consistir, no fundo (para falar a verdade, hoje como ontem), em que o amor e a razão coincidem como pilares fundamentais propriamente ditos do real: a razão verdadeira é o amor e o amor é a razão verdadeira. Em sua unidade, são o fundamento verdadeiro e o fim de todo o real.

Cardeal J. Ratzinger

Notas
1. A Cidade de Deus, São Agustín, Livro VI.
2. Existe uma versão em castelhano de seu Handbook on Evolution. [Nota da T.]
[Traduzido por Pe. Celso Nogueira, LC]